sábado, 26 de fevereiro de 2011

A Menina e o Cego - Histórias que a vida conta - texto

A MENINA E O CEGO - HISTÓRIAS QUE A VIDA CONTA
Há 50 anos, existia no sul das Minas Gerais, uma pequena cidade, com mais ou menos 5.000 habitantes, onde moravam, como em todo lugar, a riqueza, a pobreza, a avareza e a bondade, mas o que encantava, é que ali moravam também a alegria e a ingenuidade das crianças, pois podiam correr, brincar e se expressar com liberdade; não viviam trancadas entre paredes. E, na falta do mundo eletrônico, criavam elas mesmas os seus brinquedos.

Entre os habitantes naturais do lugar, moravam ali um preto velho, cego, de nome Domingos, e uma menina de nome Ritinha, que embora sendo uma menina pobre, se imaginava princesa e pretendia chegar ao posto de rainha.

O cego, todos os dias, sentava-se num banco da praça e esperava pacientemente a menina, que vinha saltitante trazer-lhe um copo de café, pão ou alguma iguaria feita em casa.

O cego percebia logo a chegada da menina, pelos sons de seus passos e seu riso cantante. Na mente do cego, tudo se iluminava e logo perguntava: - “como vai minha princesinha? Dormiu bem? Estudou muito?.”

Ritinha sempre no mundo da lua, respondia displicentemente: - Sim, dormi bem e sonhei com nosso castelo – você sabe num é? Você sabe tudo sobre nosso castelo, num sabe? E você, como passou a noite?

O cego se lamuriava, dizendo que sentiu frio à noite – pois sua casa era muito úmida, e suas cobertas muito poucas, e muitas vezes sentia fome, mas não tinha nada em casa para comer.

Mas Ritinha logo retrucava – “não se preocupe meu velho, quando eu crescer, me tornarei rainha, terei um castelo enorme, com muitos quartos, e você terá um quarto com muito conforto só pra você.”

E Domingos respondia, abanando a cabeça e fazendo – hum... hum... que beleza! Que beleza! Tudo que você me diz é música para meus ouvidos e à noite me faz adormecer na esperança de um outro dia melhor.

Ritinha, sem mais demora, e sem esperar convite, sentava-se perto do cego, balançando as pernas, pois seus pés ainda não alcançavam o chão, e punha-se, então, a tagarelar sem parar, e Domingos escutava embevecido.

“Meu amigo, hoje, sou uma menina pobre, você sabe, mas vou estudar, trabalhar, e serei muito rica. Vou construir um palácio com 400 cômodos, para onde levarei todos os pobres da cidade. No meu palácio existirão muitos jardins repletos de lindas flores colorindo todos os lugares por onde a gente andar.”

“Terei muitos animais; cavalos, vacas, cachorros, galinhas, patos, marrecos, passarinhos, e quando o sol despontar – todos colocarão suas vozes no ar, como música para acordar os habitantes do meu lar.”

“Não existirão cercas, nem muros, pois ninguém vai querer fugir deste lugar encantado que vou criar.”

“A água de nossa casa nascerá de uma fonte limpa e fresca e no seu borbulhar emitirá sons de uma canção que todas as crianças vão aprender a cantar.”

“As paredes serão erguidas com tijolos de argila que meus vassalos irão moldar, usando o carinho de suas mãos e o muito amor que terá sido plantado em seus corações.”

“As janelas serão grandes, bem grandes, largas assim (e Ritinha abre os braços, como se o velho cego pudesse ver) e serão grandes assim, para que durante o dia os raios do sol entrem e se espalhem por todos os cantos e se reflitam nas paredes onde diamantes mandarei incrustar.”

“À noite, velas serão acesas em candelabros enormes, enormes assim, que estarão nos cantos de cada cômodo, e não dependeremos de luz elétrica e nem de moinhos a rodar.”
“Na hora das refeições, vou querer na mesa todos os meus amigos, inclusive os vassalos, para juntos dividirmos os alimentos que ali mesmo terão sido preparados por mãos de fadas, que na minha cozinha virão morar. Elas transformarão abóboras em doces divinos e o simples arroz e feijão será um prato que os deuses irão desejar.”

“A nossa sala de jantar será enfeitada com rosas, orquídeas e margaridas, que espalharão perfume no ar – os vinhos serão trazidos pelos vassalos que terão amassado a uva e temperado com as varinhas de condão das fadas. Este tempero das fadas não deixará que o vinho nos embriague, e muito menos traga tentações e maus sentimentos aos nossos corações.”

“Os quatro cantos da mesa estarão sempre reservados para os anjos que Deus mandará para serem nossos guardiões – o anjo Amor, o anjo Esperança, o Anjo Prazer e o Anjo Vida. O nosso amigo Sonho se sentará na cabeceira da mesa e, na outra ponta, a nossa amiga Fantasia ficará de prontidão. Pois sem sonho e fantasia nosso castelo seria um lugar muito triste, e pouco adiantaria todo o luxo que eu pudesse comprar; as paredes, com o tempo criariam bolor, e as sombras da noite se tornariam permanentes, impedindo a todos de esperar com alegria, o amanhecer de cada dia.”

“Depois do jantar, nos daremos às mãos, e sob os sons das harpas dos anjos Amor, Esperança, Prazer e Vida, iremos dançar e cantar, brincar de roda, jogar amarelinha, abraçando nossos pares, aqueles que tivermos escolhido para amar.”

“Você, meu amigo, esquecerá o frio, a fome, e eu me sentirei amada, muito amada, porque tudo que for meu, dividirei com aqueles que me seguirem.”

Ritinha continuava sua sonhadora tagarelice e todo dia contava ao amigo uma nova versão de sua estória, de seu palácio, pois, à medida que crescia, ela conseguia se apropriar, mais e mais, de palavras, e mais conhecimentos, com os quais aumentava ou modificava suas narrativas.

O velho preto, Domingos, era cego, e na sua escuridão, ficava imaginando com os olhos da alma, as cenas fantásticas criadas na imaginação daquela menina, que todos os dias vinha lhe trazer um pouco de luz, esperança e alegria, fazendo-o rir; e, naquelas poucas horas, ele se esforçava para acreditar que todos aqueles sonhos de Ritinha um dia poderiam ser verdades.

E a menina Ritinha, um dia, foi embora em busca da realização de seus sonhos; o preto velho ficou sozinho, mas, todos os dias voltava à praça para esperar que Ritinha viesse lhe buscar. Ele não queria que quando ela voltasse, não o encontrasse na praça, e ele ficava então ali, sentado, lembrando do seu riso, dos seus gritos, e a cada rumor de criança seu coração se acelerava e um sorriso se estampava em seus lábios.

Porém, a menina nunca voltou. A vida a levou para longe, muito longe. E, como ela havia prometido ao velho amigo, lutou muito contra preconceitos, dificuldades no caminho e trabalhou; debruçou-se sobre livros e o máximo que conseguiu foi ‘ser uma pessoa comum', entre tantas outras que saem de uma cidade pequena rumo às grandes cidades em busca da realização de sonhos. Mas, logo, todos percebem que as metrópoles são arenas, não sorriem para qualquer um que chega, e somente vence o mais forte, ou aquele que já traz na bagagem conhecimentos e algum respaldo financeiro, que lhe possibilitam alcançar metas e usufruir a vida moderna.

Já se passaram 50 anos e a menina Ritinha – agora uma senhora –, nunca mais voltou à sua pequena cidade.

O velho Domingos, hoje, por certo deve estar sentado na praça de uma cidade chamada Paraíso, ouvindo o canto dos anjos dos sonhos de Ritinha, caminhando pelos jardins floridos do palácio de Deus – e quem sabe, imaginando: “- Ela prometeu, num prometeu? Prometeu e cumpriu, mandou que seus vassalos fossem me buscar, devia estar muito ocupada para ir pessoalmente me acompanhar - mas o que importa é que cá estou eu, ouvindo esta música celestial, sentindo este perfume inebriante, bebendo da água cantante que os anjos me trazem e não sei mais o que é frio, fome ou tristeza.”

”... Mas, sinto saudades da Ritinha, onde será que ela está?”

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Autora: Regina Celia (direitos autorais reservados)

São Paulo, agosto de 2005

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